quarta-feira, 19 de março de 2014

Nymphomaniac Volume II - o feminismo explícito em Lars Von Trier.

Ai você sai do cinema, depois de ler os últimos créditos com informações sobre a trilha sonora do filme, referências a todas as citações feitas (me lembro de ter visto Tarkovsky nesses créditos), o curioso aviso de que os atores do filme não foram submetidos a nenhum ato de penetração sexual e tudo o mais, e a vontade que dá é de gritar: LARS VON TRIER, SEU GÊNIO, EU TE AMOOOOOOOOOOOO!!!!

Não vou antecipar nada sobre o roteiro do filme, mas digo que no início do segundo volume de Nymphomaniac você chega a se irritar com Lars, por um nanocentésimo de segundo, por conta do que parece que vai tomar um rumo um tanto quanto caricato.

Só que não! Claro que não! Óbvio que quando se trata do genial, fabuloso, magnífico e cruelmente inteligente Lars Von Trier, não existirão obviedades!

Ou seja, a única obviedade é que nada óbvio acontecerá jamais num filme de Lars.

Enquanto isso, ele insiste na questão do desejo. Mas, e fica muito claro pra mim agora, única e tão somente na questão do desejo feminino.

Desvenda-se, nesta segunda parte do filme, que a questão central do que se iniciou com Nymphomaniac Volume I é exatamente a clássica pergunta de Freud: “afinal, o que quer uma mulher?”

E, no visceral desfecho do filme, Lars responde, a la Lacan: “ela quer gozar!

E ai, novamente, como faz em todos os seus filmes, o homem é apresentado como fraco, ainda que, neste, não haja um personagem masculino específico escolhido para encarnar o papel do “covarde”, em Nymphomaniac Volume II, Lars Von Trier termina por arrasar com o gênero todo, de uma só vez, com uma só roçada de foice.

Então, em seu relato psicanalítico para Seligman (Stellan Skarsgård), quando Joe (Charlotte Gainsbourg) está no limite da exaustão gerada por sua inadequada sexualidade, cheia de culpas pelo desejo, ouvimos Seligman ponderar, relembrando momentos anteriores do filme, desde o Volume I, que ninguém estranharia se fossem dois homens procurando por uma mulher num trem e que a sociedade não condena o homem que abandona os filhos por causa de seu desejo, assim como não o condena por praticar sexo com duas ou mais mulheres, e segue nos fazendo questionar se nos soariam tão repulsivas as experiência vividas e relatadas por Joe, caso tivessem sido praticadas por um homem e não por uma mulher.

Quero ver mulher que não se emocione neste ponto do filme.

Eu chorei. E choro agora, de novo, relembrando aquele rico diálogo, que costura o filme todo e nos faz refletir sobre o quanto ainda estamos sujeitas ao domínio do masculino, único gênero a quem é socialmente permitido desejar sem limites, permissão esta que, por exclusiva, muitas vezes, nos preenche de agressividade (masculina) e nos coloca em postura de agir como homens, para nos fazer ouvir e tentar sobreviver numa confusa tentativa de liberdade de ser...

O filme tem fortes cenas de sadomasoquismo, mas é Lars Von Trier quem bate pesado na cara de todo mundo, ao enquadrar a sociedade patriarcal e machista sob a ótica do homem covarde, fraco e dependente, assim produzido por esta própria sociedade, a qual está submetido em sua covardia (a fim de manter subjugado o perigoso desejo feminino), e a quem tudo é permitido em questões de desejo e, que, por isto, tiraniza a mulher ao seu bel prazer. Com a sua própria conivência, é evidente, introjetada exatamente por este asqueroso sistema de domínio, que leva a uma constante retroalimentação de culpas num círculo vicioso de mortificações da mulher que deseja.

É com extrema segurança e certeza de quem sabe do que está falando, que Lars Von Trier conduz esses diálogos, sobretudo os finais, numa conclusão perfeita que faz você ouvir a voz dO Cara te dizendo: mulher, liberte-se! Assuma o seu desejo! Goze o gozo vivo! Não adormeça!

E ai não tem como não sair do cinema amando mais, se é que possível amar mais ainda, esse gênio dinamarquês que faz cinema conclamando à libertação e esfregando na nossa cara, deslavadamente, a ruína da sociedade patriarcal que, sim, ainda nos oprime!

Meu analista que me perdoe, mas hoje Lars Von Trier me adiantou alguns anos de terapia.

A este respeito, aliás, na cena final, antes de seu ápice libertador, Joe diz a Seligman que ter lhe relatado toda a sua história, trouxe a ela uma espécie de alívio e a possibilidade de tomar uma decisão, numa clara indicação de que o que se deu ali, foi uma grande sessão de psicanálise.

Ainda que, perceba-se bem, pela decisão inicialmente tomada por Joe, o insight gerado tenha sido castrador.

Ou não, pois a sequência seguinte, e grande final do filme, demonstra claramente a libertação do desejo desta mulher que porta o masculino nome de Joe.

...Tanta coisa mais pra dizer, a virgindade de Seligman e sua característica confessada de ser assexuado... A interessantíssima quase repetição da cena de Anticristo, onde o menino cai da janela (aqui não cai) ao som de Lascia ch’io pianga, de Händel... Charlotte Gainsbourg, Shia LaBeouf, Willem Dafoe...

Informações sobre história das religiões, trazidas por Seligman ao tempo em que nos é mostrada em sua parede cópia de uma obra antiga de Andrei Rublev, um dos maiores artistas russos da idade média que pertencia à igreja ortodoxa russa e pintava ícones religiosos (cuja história foi filmada por Tarkovsky em 1971), onde nos é contado que o Cristianismo se dividiu em igreja ortodoxa (cristianismo oriental) e igreja romana (cristianismo ocidental), sendo que a igreja oriental adotou muito mais os símbolos de Maria com Jesus no colo, numa clara opção pela alegria e pelo prazer, enquanto a igreja ocidental adotava o crucifixo e a via dolorosa de Cristo como símbolos predominantes, em evidente escolha por dor e sofrimento.... (e culpa e culpa e culpa!!!)

Questionamentos sobre a coisa 
da obrigatoriedade da utilização dos termos politicamente corretos, o que, para Joe, que insiste em chamar africanos de negros, a despeito da advertência de Seligman, abalaria os alicerces do estado democrático. E isto, pra mim, é um recado claro de Lars Von Trier para a hipócrita Hollywood que o boicotou em 2012 em função de algumas declarações suas, mal interpretadas, a respeito de Hitler...

Enfim, a conversa de Lars com a gente é forte! Forte, direta, reta e colocada; ele nos olha diretamente nos olhos e conversa conosco como somente um Homem muito forte é capaz de fazer!

Pra fechar, voltando à coisa do masculino, outro dia meu analista me perguntava se não existe nenhum homem neste mundo que eu não considere fraco, nem na literatura ou algo assim e eu, após pensar um pouco respondi que sim, havia um único: um diretor dinamarquês chamado Lars Von Trier, que tinha a coragem de retratar a covardia masculina em todos os seus filmes.

Perdoem meninos, no abraço mais carinhoso de quem nasceu hétero e não pode viver sem vocês e na mais cristalina certeza de que somente os bravos e os fortes terão sabido ouvir tudo isto sem se acovardar! É que esse Lars Von Trier é mesmo hors-concours!

E, pra me redimir de qualquer ofensa, a magistral Lascia ch’io pianga na voz da magnífica soprano Cecília Bartoli:




Lascia ch'io pianga
mia cruda sorte,
e che sospiri
la libertà.
Il duolo infranga
queste ritorte
de' miei martiri
sol per pietà!

(Deixe que eu chore
Minha sorte cruel,
Que eu suspire
Pela liberdade.
A dor quebra
Estas cadeias
De meus martírios,
Só por piedade!
)


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