SELIGMAN: Ícones
geralmente são ligados à Igreja Oriental. Eu posso ser um pouco teórico?
JOE: Sim. Eu gostaria que você me
falasse sobre o seu quadro.
SELIGMAN: Embora
a Igreja Cristã tenha sido dividida em 1054 por diferenças de opinião entre as
Igrejas do Oriente e do Ocidente, o que chamamos hoje de Igreja Ortodoxa e de
Igreja Católica Romana, esse é o típico ícone da Igreja Oriental. Ele
geralmente retrata a Virgem Maria e o menino Jesus e, mais raramente, por
exemplo, a crucificação, que na Igreja do Ocidente foi muito mais prevalente. Se
você generalizar, poderia dizer que a Igreja do Ocidente é a Igreja do
Sofrimento, e a Igreja Oriental é a Igreja da Felicidade. Se imaginar uma
viagem mental de Roma para o Leste, você se sente como se você se afastasse da
culpa e da dor para a alegria e para a luz.
SELIGMAN: No
começo, você disse que o seu único pecado foi ter exigido mais do pôr do sol.
Ou seja, acho que você queria mais da vida do que era bom para você. Você era
uma pessoa exigindo o seu direito e mais do que isso, você era uma mulher
exigindo esse direito.
JOE: Isso perdoa tudo?
SELIGMAN: Você
acha que se dois homens entrassem em um trem à procura de mulheres, alguém
levantaria uma sobrancelha, ou se um homem tivesse tido a vida que você teve? E
a história da Sra. H. seria muito banal, se você fosse homem e a sua conquista teria
sido uma mulher. Quando um homem deixa seus filhos por causa do seu desejo, aceitamos
com indiferença, mas você como uma mulher você teve que assumir uma culpa, um
fardo de culpa que nunca poderia ser aliviado. Ou seja, toda a reprovação e
culpa que se acumularam pelos anos, foram demais para você, e você reagiu de
forma agressiva, quase como um homem, tenho que dizer. E você lutou. Você lutou contra
o sexo que tinha sido oprimido e mutilado e matado você e milhares de mulheres.
SELIGMAN: Você não deveria usar essa palavra. Não é o que se chama de "politicamente correto". 'Negro'.
JOE: Bem, me desculpe, mas nas minhas relações, sempre foi um sinal de honra chamar os bois pelos nomes. Cada vez que uma palavra se torna proibida, você remove uma pedra do alicerce democrático. A sociedade demonstra sua impotência em face de um problema concreto, removendo palavras da língua.
SELIGMAN: Acho que a sociedade diria que... Politicamente correto é uma expressão muito precisa de preocupação democrática para as minorias.
JOE: E digo que a sociedade é tão covarde quanto as pessoas nela... Que, na minha opinião, também são demasiado estúpidas para a democracia.
Entendo o seu ponto, mas discordo totalmente. Não tenho nenhuma dúvida sobre as qualidades humanas. As qualidades humanas podem ser expressas em uma palavra: hipocrisia.
Enaltecemos aqueles que dizem o certo, mas desejam o errado... E zombamos daqueles que dizem o errado, mas desejam o certo.
Ai você sai do cinema, depois
de ler os últimos créditos com informações sobre a trilha sonora do filme,
referências a todas as citações feitas (me lembro de ter visto Tarkovsky nesses
créditos), o curioso aviso de que os atores do filme não foram submetidos a nenhum ato de penetração sexual e tudo o mais, e a vontade que dá é de gritar: LARS VON TRIER, SEU GÊNIO, EU TE
AMOOOOOOOOOOOO!!!!
Não vou antecipar nada sobre o roteiro do filme, mas digo que no início do segundo volume de Nymphomaniac você chega a se irritar
com Lars, por um nanocentésimo de
segundo, por conta do que parece que vai tomar um rumo um tanto quanto
caricato.
Só que não! Claro que não!
Óbvio que quando se trata do genial, fabuloso, magnífico e cruelmente
inteligente Lars Von Trier, não
existirão obviedades!
Ou seja, a única obviedade é
que nada óbvio acontecerá jamais num filme de Lars.
Enquanto isso, ele insiste na
questão do desejo. Mas, e fica muito claro pra mim agora, única e tão somente
na questão do desejo feminino.
Desvenda-se, nesta segunda parte
do filme, que a questão central do que se iniciou com Nymphomaniac Volume I é exatamente a clássica pergunta de Freud: “afinal, o
que quer uma mulher?”
E, no visceral desfecho do
filme, Lars responde, a la Lacan: “ela quer gozar!”
E ai, novamente, como faz em
todos os seus filmes, o homem é apresentado como fraco, ainda que, neste, não
haja um personagem masculino específico escolhido para encarnar o papel do “covarde”, em Nymphomaniac Volume II, Lars Von Trier termina por arrasar com o gênero todo, de
uma só vez, com uma só roçada de foice.
Então, em seu relato
psicanalítico para Seligman (Stellan
Skarsgård), quando Joe (Charlotte
Gainsbourg) está no limite da exaustão gerada por sua inadequada sexualidade, cheia de culpas
pelo desejo, ouvimos Seligman
ponderar, relembrando momentos anteriores do filme, desde o Volume I, que ninguém estranharia se fossem dois homens procurando por uma mulher num
trem e que a sociedade não condena o homem que abandona os filhos por causa de seu desejo, assim como não o condena por praticar sexo com duas ou mais mulheres,e
segue nos fazendo questionar se nos soariam tão repulsivas as experiência vividas e relatadas por Joe, caso tivessem
sido praticadas por um homem e não por uma mulher.
Quero ver mulher que não se
emocione neste ponto do filme.
Eu chorei. E choro agora, de
novo, relembrando aquele rico diálogo, que costura o filme todo e nos faz
refletir sobre o quanto ainda estamos sujeitas ao domínio do masculino, único
gênero a quem é socialmente permitido desejar sem limites, permissão esta que,
por exclusiva, muitas vezes, nos preenche de agressividade (masculina) e nos
coloca em postura de agir como homens, para nos fazer ouvir e tentar sobreviver
numa confusa tentativa de liberdade de ser...
O filme tem fortes cenas de
sadomasoquismo, mas é Lars Von Trier
quem bate pesado na cara de todo mundo, ao enquadrar a sociedade patriarcal e machista
sob a ótica do homem covarde, fraco e dependente, assim produzido por esta própria sociedade, a qual está submetido em sua covardia (a fim de manter subjugado o perigoso desejo feminino), e a quem tudo é permitido em
questões de desejo e, que, por isto, tiraniza a mulher ao seu bel prazer. Com a sua própria conivência, é evidente, introjetada exatamente por este asqueroso sistema de domínio, que leva a uma constante retroalimentação de culpas num círculo vicioso de mortificações da
mulher que deseja.
É com extrema segurança e
certeza de quem sabe do que está falando, que Lars Von Trier conduz esses diálogos, sobretudo os finais, numa
conclusão perfeita que faz você ouvir a voz dO Cara te dizendo: mulher,
liberte-se! Assuma o seu desejo! Goze o gozo vivo! Não adormeça!
E ai não tem como não sair do
cinema amando mais, se é que possível amar mais ainda, esse gênio dinamarquês
que faz cinema conclamando à libertação e esfregando na nossa cara,
deslavadamente, a ruína da sociedade patriarcal que, sim, ainda nos oprime!
Meu analista que me perdoe, mas
hoje Lars Von Trier me adiantou
alguns anos de terapia.
A este respeito, aliás, na cena
final, antes de seu ápice libertador, Joe
diz a Seligman que ter lhe relatado
toda a sua história, trouxe a ela uma espécie de alívio e a possibilidade de
tomar uma decisão, numa clara indicação de que o que se deu ali, foi uma grande
sessão de psicanálise.
Ainda que, perceba-se bem, pela
decisão inicialmente tomada por Joe, o insight
gerado tenha sido castrador.
Ou não, pois a sequência
seguinte, e grande final do filme, demonstra claramente a libertação do desejo
desta mulher que porta o masculino nome de Joe.
...Tanta coisa mais pra dizer,
a virgindade de Seligman e sua
característica confessada de ser assexuado... A interessantíssima quase
repetição da cena de Anticristo, onde
o menino cai da janela (aqui não cai) ao som de Lascia ch’io pianga, de Händel... Charlotte
Gainsbourg, Shia LaBeouf,
Willem Dafoe...
Informações sobre história das
religiões, trazidas por Seligman ao tempo em que nos é mostrada em sua parede cópia de uma obra antiga de Andrei Rublev, um dos maiores artistas russos da idade média que pertencia à igreja ortodoxa russa e pintava ícones religiosos (cuja história foi filmada por Tarkovsky em 1971), onde nos é contado que o Cristianismo se dividiu em igreja ortodoxa
(cristianismo oriental) e igreja romana (cristianismo ocidental), sendo que a
igreja oriental adotou muito mais os símbolos de Maria com Jesus no
colo, numa clara opção pela alegria e pelo prazer, enquanto a igreja ocidental adotava o crucifixo
e a via dolorosa de Cristo como símbolos predominantes, em evidente escolha por dor e sofrimento.... (e culpa e culpa e culpa!!!)
Questionamentos sobre a coisa
da obrigatoriedade da utilização dos termospoliticamente
corretos, o que, para Joe, que
insiste em chamar africanos de negros, a despeito da advertência de Seligman, abalaria os alicerces do
estado democrático. E isto, pra mim, é um recado claro de Lars Von Trier para a hipócrita Hollywood
que o boicotou em 2012 em função de algumas declarações suas, mal interpretadas,
a respeito de Hitler...
Enfim, a conversa de Lars com a gente é forte! Forte,
direta, reta e colocada; ele nos olha diretamente nos olhos e conversa conosco como somente um Homem muito forte é capaz de fazer!
Pra fechar, voltando à coisa do
masculino, outro dia meu analista me perguntava se não existe nenhum homem
neste mundo que eu não considere fraco, nem na literatura ou algo assim e eu,
após pensar um pouco respondi que sim, havia um único: um diretor dinamarquês chamado
Lars Von Trier, que tinha a coragem
de retratar a covardia masculina em todos os seus filmes.
Perdoem meninos, no abraço mais
carinhoso de quem nasceu hétero e não pode viver sem vocês e na mais cristalina
certeza de que somente os bravos e os fortes terão sabido ouvir tudo isto sem se acovardar! É que esse Lars Von Trieré mesmo hors-concours! E, pra me redimir de qualquer ofensa, a magistral Lascia ch’io piangana voz da magnífica soprano Cecília Bartoli:
Lascia ch'io pianga
mia cruda sorte,
e che sospiri
la libertà.
Il duolo infranga
queste ritorte
de' miei martiri
sol per pietà!
(Deixe que eu chore
Minha sorte cruel,
Que eu suspire
Pela liberdade.
A dor quebra
Estas cadeias
De meus martírios,
Só por piedade!)
Finda a temporada do Oscar,
voltando aos franceses, me deparo com Jeune
et Joliee a história de Isabelle
(interpretada corajosamente pela modelo Marine
Vacth) a jovem e bela adolescente de François
Ozon, que em 2012 nos presenteou com o genial Dans la Maison (Dentro da Casa).
Isabelle mora
com sua mãe, padrasto e irmão mais novo e Ozon
nos faz acompanha-la por quatro estações, começando pelo verão, na praia, onde
ela apaga as 17 velinhas de seu bolo de aniversário e perde sua virgindade com
um jovem alemão.
Nada material falta a Isabelle, mas na estação seguinte, o
outono, vemos a jovem, secretamente, iniciando-se na prostituição.
E Ozon constrói a história de alguém a quem de verdade falta algo que
caberá a nós, espectadores, descobrir o que é.
Há um pai, que mora longe e que
nunca vemos, mas que em alguns diálogos aparece sem que Isabelle nos diga quem, de fato, é esse pai. “É meu pai” e ponto.
Sabemos que o pai lhe manda
dinheiro em duas ocasiões no ano: em seu aniversário e no natal, mas o pai não
é o responsável pelo enredo essencial do filme.
Ou seria?
Em sessão de terapia na
companhia da mãe, esta se surpreende ao saber que o pai mandara um cheque de
500 euros diretamente a Isabelle no
último natal.
Ozon tem
esse dom, de nos deixar intrigados e pensantes por tempos ainda, depois do
filme findo.
Nas quatro estações nas quais nos é apresentada a vida de Isabelle,
começando com o seu aniversário de 17 anos, fica evidente sua enorme
dificuldade em se ligar afetivamente a alguém; com a própria mãe não a vemos
ligada.
Há um vínculo amoroso com seu irmãozinho
e com uma amiga do colégio. No mais, não a vemos capaz de criar vínculos
afetivos, entregar-se.
No verão a conhecemos, no
outono ela se prostitui sob o codinome de Léa e se afeiçoa muito a um velho
que acaba morrendo embaixo dela enquanto faziam sexo no quarto de um luxuoso
hotel.
No inverno, após ter seus atos
descobertos pela mãe através da polícia, por conta da morte do velho, Isabelle inicia tratamento
psicoterápico e acaba voltando a ser uma jovem “normal”.
A questão do dinheiro (e quantos
euros ela acumulava escondidos numa nécessaire
no maleiro de seu guarda roupas!), como algo que a aliviava de algum sentimento
que não conseguimos identificar exatamente qual é, até por que, se há algo que
ela realmente não necessitava era dinheiro. Tanto que o guardava todo.
A destinação desta grande
quantia em dinheiro, apropriada pela mãe e reivindicada pela jovem após ter
sido descoberta. A mãe silencia sobre a apropriação, Isabelle a questiona; a mãe sugere que seja destinado a uma instituição
de reabilitação de jovens prostitutas; Isabelle,
na primeira sessão de terapia, acompanhada pela mãe, provoca, perguntando qual
o preço da sessão e dizendo que quer pagar as próximas com o dinheiro que
ganhou. A mãe discorda, mas o terapeuta avaliza, afirmando que isto seria
salutar.
Na primavera, Isabelle, em terapia, passa a viver uma
vida comum às jovens de sua idade; trabalha como baby-sitter para uma amiga de sua mãe que teme ter seu esposo
seduzido por ela, vai a uma festa da escola para dar uma força a uma amiga,
conhece ali um jovem de sua idade que a quer beijar e começa a namorá-lo,
aplaca, enfim, os temores da mãe de que ela seja uma ninfomaníaca e a vida
parece ter retomado seu curso de normalidade.
Já ao final da primavera,
porém, em cena domingueira familiar, após todos fazerem planos de onde passarão
juntos o próximo verão, vemos Isabelle dizendo
ao jovem que o namoro acabou e que ela não o ama.
Numa tradução de toda
curiosidade e todo desejo de experimentação, típicos da adolescência, Isabelle
tira de um esconderijo seu chip de celular dos tempos da prostituição e se
depara com uma infinidade de recados para Léa.
Vemos Isabelle, então, no saguão do mesmo hotel em que morrera o velho, a
espera de um cliente que, para
surpresa, é a própria esposa do velho, Alice,
na pele da magnífica, esplendorosa e divina Charlotte Rampling, uma
senhora de grande beleza e de classe inigualável.
Charlotte Rampling
O que se passa nesse encontro,
além de belo e delicado, é, talvez, a chave deixada por Ozon para a nossa compreensão a respeito de todos os motivos de
Isabelle.
Ozon que,
para cada estação do ano de Isabelle,
nos oferece uma diferente canção de Françoise
Hardy: L’Amour d’un Garçon, para o verão; A Quo iça Sert, para o
outono; Premiere Rencontre, para o inverno e Je Suis Moi, para a primavera e
final de seu filme.
Jeune
et Jolie é, portanto, uma sinfonia; brutal e delicada ao mesmo tempo. Abaixo, as quatro canções de Françoise Hardy que representam quatro estações na vida de Isabelle:
Para não passar em branco,
apesar do atraso, deixo aqui o resultado da premiação do Oscar 2014, havida no último domingo, 2 de março.
O Oscar de Melhor Filme foi para 12 Anos de Escravidão, como todo mundo já estava careca de saber.
O italiano “A Grande Beleza”, verdadeira obra de
arte de Sorrentino, levou o merecidíssimo prêmio de Melhor Filme Estrangeiro.
Melhor
Ator
para Matthew
McConaughey, por "Clube de Compras Dallas",
como todo mundo já sabia, afinal quem emagrece mais de cinco quilos tem mesmo
que ganhar um Oscar.
Não foi desta vez que Leozinho levou
o seu, mas virou alvo de memes muito engraçados na internet.
Cate Blanchett foi
eleita a Melhor Atriz, por "BlueJasmine", o que eu prefiro nem comentar.
E, mais
uma vez, o prêmio de Melhor Direção
não foi para o Melhor Filme. Alfonso
Cuarón foi eleito Melhor Diretor,
por "Gravidade", enquanto
o grande prêmio da noite ficou com "12 Anos de Escravidão", dirigido por Steve
McQueen.
Melhor
Direção para Cuarón, aliás, comemoramos
Horrores!!!!!! O primeiro latino a ganhar um Oscar de Direção. Eu já sabia!
Foram sete prêmios para "Gravidade": efeitos visuais, edição de som, mixagem de
som, fotografia, montagem, trilha sonora e diretor.
Arriba México! Viva Cuarón!!!
Abaixo a
lista completa de vencedores do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas
de Los Angeles: