domingo, 31 de março de 2013

BENNY’S VIDEO (1992)


Um dos primeiros filmes de Michael Haneke, que já trilhava firme seu estilo hiper-realista, Benny’s Video é uma crítica crua e violenta à sociedade do espetáculo, particularmente no que diz com deslumbramento midiático, em tempos onde cada um carrega em si a possibilidade da produção audiovisual, que aprisiona e hipnotiza, mantendo-nos à margem de nós mesmos, como meros espectadores de nossas próprias vidas e completamente despidos da condição de sujeitos.

Benny é um adolescente nórdico, pertencente a uma família aristocrática que cultiva o hobby das imagens. Passa a maior parte do tempo confinado em seu quarto, que é uma bem equipada ilha de edição das imagens que costuma captar, assim como seus pais.


O jovem é aficionado por um vídeo que fez, de um enorme porco sendo morto com uma pistola de ar comprimido. Cena brutal e violenta que vê e revê incessantemente, até passa-la para uma garota que leva para seu quarto numa ocasião em que seus pais saem em viagem.


Após verem o vídeo caseiro do porco, feito na propriedade da família de Benny, o garoto tira de uma gaveta a arma que matou o porco e provoca a garota a comprimi-la contra si.


Num jogo adolescente onde ele a chama de covarde por não ter tal “coragem”, Benny acaba disparando a arma no corpo da jovem, que o desafiara questionando porque ele não o fazia, também o chamando de covarde.


Todas as câmeras de Benny estavam a postos para captar tão bizarro espetáculo e a mocinha agoniza como um porco até sucumbir aos disparos do garoto.


O que se esparrama aos nossos olhos e mentes a partir dai, é uma trama brutal na qual o próprio filho providencia a exibição do vídeo da morte da garota aos pais, causando reações de deslumbramento e medo que vão desde a racionalização sobre se devem ou não entregar o filho à polícia, até a decisão de protegê-lo, protegendo-se a si mesmos, como pais que poderiam ser acusados de negligentes na condução dos fatos ligados ao filho.


A família tem um esqueleto guardado no armário, e enquanto avalia o que fazer com ele, discute a decisão de levar os pertences da defunta para queimá-los na fazenda e esquartejar o seu corpo em pequenas partes que possam sumir “desde que não entupam o encanamento”, ao mesmo tempo em que o filho é levado para uma viagem com a mãe, em visita a região do Oriente Médio.


No retorno, vê-se que os membros da família não sofreram alterações emocionais significativas, a despeito do bizarro episódio. O pai tenta conversar com Benny tranquilizando-o ao argumento de que tudo está sob controle e consegue até pronunciar um tímido “eu te amo”, que se perde na ausência de reação do filho.


É como se todos tivessem apenas saído juntos de uma sala de cinema, ou algo assim.


Ao final, Benny triunfalmente leva à polícia sua obra prima: o vídeo editado onde os pais falam de um corpo a ser picotado e de pertences de uma jovem morta a serem queimados. O delegado lhe faz algumas perguntas e o jovem lhe questiona: “posso ir agora?”.


Pais e filhos se encontram na porta da delegacia, quando aqueles são chamados e este foi liberado por ter trazido imagens que os comprometiam.


Todos seres apáticos, resignados... Resta a nós, espectadores, a imagem e o seu incômodo.


Viva Haneke, o visionário Haneke, que já em 1992 nos chamou a pensar sobre isso. Pensemos!




IO E TE (2012)


Que grata surpresa ver um filme de Bernardo Bertolucci dez anos depois de seu último “Os Sonhadores”, belíssimo, que retratou Maio de 68!

Não me surpreendi com a temática: a adolescência. Os Sonhadores já tratou de anseios juvenis. Mas, aqui, em Io e Te, o genial Bertolucci cria todo um cenário apto a expressar anseios muito mais existenciais do que políticos.

Adaptação do romance de Niccolò Ammaniti, Io e Te tem como protagonista o jovem de 14 anos, Lorenzo, vivido pelo sensacional Jacopo Olmo Antinori.

Com seu rosto repleto de cravos e espinhas, seus despenteados e rebeldes cabelos encaracolados e uma expressão que mescla perfeitamente a inocência e um vago desejo de perdê-la, Lorenzo se nega a sair de seu narcisismo em estado puro e, eu diria, até, de seu autismo cultivado com devoção.

No começo do filme você estranha, mas até simpatiza com aquela figura esdrúxula, que desafia seu analista, criva o cara do pet shop de perguntas e tem diálogos edipianos com sua mãe. Mas quando ele sai de casa pronto para participar de um acampamento de esqui com a escola, todo equipado, e se tranca no porão da sua casa para passar uma semana com um estoque de coca-cola, algumas guloseimas e um formigueiro de vidro, você se pergunta “o que, diabos, esse mala sem alça vai aprontar enquanto deixa sua mãe pensando que ele está viajando com a escola?”.

Lorenzo se abriga da possibilidade de socialização, quer preservar sua inocência e se preservar da transição para a vida adulta. Quer manter intactas suas curiosidades infantis estando só, mas ao abrigo materno, pois ainda que não lhe saibam no porão, ele sabe que logo acima dele repousam seus pais.

Porém, como ninguém pode se abrigar da vida, sua meia irmã, Olivia, expulsa de casa pela mãe de Lorenzo, em quem (mais tarde se descobre) no passado atirara uma pedra quase a matando, aparece no porão para retirar dali sua caixa de pertences.

Jovem, ainda que mais velha que Lorenzo, a bela Olivia (Tea Falco), acaba abrigando-se com Lorenzo no porão, a quem se impõe por estar em forte crise de abstinência de heroína e não ter para onde ir. Traz, para “a caverna” a notícia de que existe um mundo real que não se compõe apenas pelas projeções oníricas aonde se abriga seu irmão.

Olivia é o arauto da passagem. E, em meio a uma cenografia bertolucciana, nós somos transportados também; primeiro a um intrépido momento de nossas vidas (e/ou das vidas de nossos filhos), onde relembramos com ternura nossa poderosa adolescência. Depois, à necessidade poética de que a vida seja real.

Lorenzo nos conduz ao passado. Olívia nos toma pela mão e ordena que cresçamos. Ambos nos embalam, realidade e ternura; fantasia e sonhos possíveis; a crueza objetiva da vida numa demonstração de que é preciso seguir caminhando para fora de nossas cavernas e porões, onde ficarão para sempre guardadas nossas melhores lembranças. Seguir caminhando em direção ao que se é, respirar-se, renovar-se.

Grazie, Bertolucci!

domingo, 17 de março de 2013

LE TEMPS DU LOUP (2003)


Tempos de Lobos, do psicólogo, filósofo, teatrólogo,  pessimista e genial cineasta austríaco Michael Haneke, é um filme realizado em 2003, cuja temática me remeteu muito ao Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, ainda que Saramago nos apresente um final bem mais otimista.
Haneke realizou aqui uma obra apocalíptica, que começa com uma família francesa (pai, mãe e um casal de filhos), chegando em sua casa de campo e, ao adentrar a residência, ela está ocupada por um outro casal, com sua criança, cujo pai está armado e acaba por atirar no dono da casa.

A partir daí, o que se vai percebendo é que a os membros da sociedade não têm mais o verniz da civilidade e que todos estão retornando ao estado de natureza.

O que em Saramago nos é muito bem explicado como uma cegueira branca que finda por dar origem ao caos, aqui, em Haneke, é um processo que nos vai sendo descortinado em meio a tentativas de compreensão objetivas, que, aliás, não alcançamos nunca, porque simplesmente não há contexto histórico para o que ali se está a passar.

Você fica se perguntando em qual guerra europeia aquilo se estaria a passar, mas não há relação com outra coisa que não seja a essência bárbara e catastrófica que aflora nos humanos quando seus instintos buscam apenas sobreviver.

Mesmo porque, o cenário é contemporâneo, carros, roupas, pessoas de hoje.

Após a recepção dos protagonistas na casa de campo, Anna (a mãe) sai com seus dois filhos buscando sobreviver.

Aliás, Anna é vivida por Isabelle Huppert, que parece estar para Haneke, assim como Charlotte Gainsbourg está para Lars Von Trier.

Nessa caminhada por sobrevivência, vamos vivenciando a catástrofe da barbárie humana, pois não há terremotos, não há guerras, explosão atômica, nenhum flagelo natural, enfim, algo externo que faça com que as pessoas estejam fugindo e procurando proteção ao tempo em que agem como animais.

Pelo caminho, a essência humana. O bom e o mal, o medo e a coragem, a incerteza sobre a trajetória. O encontro com um grupo de pessoas que espera por salvação. O que se busca?

A proteção parece vir na forma de um trem, que ninguém sabe mesmo se existe, e que os levaria para um lugar seguro. Isto me lembrou muito “Esperando Godot” de Beckett.

Às margens do trilho de trem, pessoas se abrigam e tentam inutilmente instituir um estado de direitos. Não há humanismos, apenas rudimentares instintos de sobrevivência. Tempos dos lobos.

Há um poema, considerado o mais antigo poema alemão, Codex Regius, que tenta descrever Ragnarök e a morte dos deuses da mitologia nórdica, que prenuncia o fim do mundo. O Cântico dos Visitantes tem um título chamado O Tempo dos Lobos, de onde Haneke extraiu o título deste filme.

Em tempo: não tem música e do nada começam a subir os créditos finais, como tudo em Haneke.