domingo, 8 de dezembro de 2013

O SONHO DE WADJDA (2012)


Este filme não só é o primeiro filme produzido dentro da Arábia Saudita, como também o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher na história da Arábia Saudita.

Haifaa al-Mansour é o nome da poderosa.

Por incrível que pareça, o filme não pode ser exibido lá, pois a Arábia Saudita não dispõe de salas de cinema oficiais.

A Alemanha co-produziu o filme, comparecendo financeiramente, com ajuda das comissões de cinema de países como a Jordânia e Abu Dhabi e também do Sundance Institute e do Hubert Bals Fund, ligado ao Festival de Roterdã

Delicado, sem ser piegas, com um pé bem fincado na atualidade, Haifaa al-Mansour, que também assina o belo roteiro, dirige a garota Waad Mohammed, que estreia no cinema interpretando a garota Wadjda, de forma brilhante, trazendo-nos, ao mesmo tempo, uma história crua e sensível.

Através de Wadjda, uma garota de 12 anos que quer a todo custo uma bicicleta para apostar corrida com seu amigo, o garoto Abdullah, a diretora e roteirista Haifaa al-Mansour constrói um cenário que vai nos descortinando a opressão sofrida pelas mulheres naquele país.

Assim, vemos a mãe de Wadjda, interpretada pela bela atriz Reem Abdullah sofrendo porque não pode mais ter filhos e seu esposo, por mais que ambos se amem, deve ter um filho homem, o que autoriza a família dele a lhe buscar uma segunda esposa.

Somos inseridos no ambiente escolar de Wadjda, composto obviamente de forma exclusiva por mulheres, onde existem transgressões adolescentes, assim como na sociedade ocidental, mas, desde a diretora da escola, passando pelas professoras e as próprias meninas, existe, em regra, um pacto profundo com tudo aquilo que as oprime.

Podemos acompanhar, também, a questão do trabalho feminino, de sua locomoção, da forma como devem falar baixo ("sua voz é sua nudez, você quer que os homens a vejam?" ensina a professora na escola), as dações em casamento, quando ainda são muito jovens, o desejo feminino reprimido, a vaidade restrita às paredes da casa, o ciúme masculino...

Mas o centro de tudo é mostrado a partir do desejo da menina, e Wadjda quer uma bicicleta.

Diante da negativa em lhe darem uma, pois isto não é coisa para meninas, imagine! Wadjda, que já tem habilidades em juntar dinheiro, se inscreve num concurso promovido pela escola para meninas sobre o alcorão, cujo prêmio é uma quantia significativa que lhe permitiria comprar uma bicicleta.

Linda a cena em que seu amiguinho Abdullah a vê chorando e lhe diz: "eu te dou a minha bicicleta" ao que Wadjda responde: "mas ai eu não teria quem me acompanhasse!" - insistindo em ter a sua própria bicicleta.

Vejam bem que a questão aqui não é, absolutamente a falta de dinheiro para ter uma bicicleta, mas sim a proibição de que uma menina pedale pelas ruas, sob pena, inclusive, de cair, se machucar e perder o bem mais precioso de uma mulher, que é a sua virgindade (!).

O filme foi exibido e premiado em festivais como Veneza, Roterdã e Abu Dhabi.

O final, assim como o filme todo, é lindamente simples e reflexivo.

Eu recomendo que você assista!




sábado, 2 de novembro de 2013

BEHIND THE CANDELABRA - MY LIFE WITH LIBERACE (2013)

Fazia tempo que não postava nada aqui, mas hoje, após assistir MINHA VIDA COM LIBERACE, me deu vontade de escrever alguma coisa.

Uma produção da HBO Filmes, com direção de Steven Soderbergh (Traffic, Sexo, Mentiras e Videotape, Onze Homens e um Segredo, O Inventor de Ilusões, Erin Brockovich, uma Mulher de Talento, Side Effects, Che, Che 2 - A Guerrilha, Terapia de Risco, Kafka, entre outros).

Diz-se ser este o último filme de Soderbergh, que só aceitou o financiamento de um canal televisivo porque, pasmemos, mesmo com a grandiosidade do nome de Soderbergh e do elenco composto pelos monstros sagrados Michael Douglas e Matt Damon, os produtores cinematográficos consideraram arriscado o tema da homossexualidade, pano de fundo do filme.

Mesmo assim, o motivo anunciado por Soderbergh para esta parada (ainda que possa ser temporária), é de que vai se dedicar à pintura.

O filme é uma linda adaptação do livro “Behind the Candelabra: My Life With Liberace”, escrito por Scott Thorson, que viveu durante cinco anos com o pianista e showman Liberace, uma das figuras mais populares do Show Business entre as décadas de 50 e 70, conhecido tanto pelo seu virtuosismo, quanto por sua forma excêntrica de ser e de viver.

Conta-se a história de como Scott foi apresentado a Liberace, em meados dos anos 70, iniciando uma história conturbada de sedução, amor e dependência.

Scott tinha uma carente história familiar, era órfão e já passara por vários lares adotivos. Encontrou em Liberace um provedor, um pai, um irmão, um amor, que, como parecia ser seu comportamento costumeiro com os jovens, seduziu-o com sua riqueza e com propostas de adoção e testamento a fim de que Scott permanecesse amparado após a sua morte.

Tudo terminou com uma ação de indenização, proposta por Scott em face de Liberace, em 1982, argumentando a promiscuidade do pianista e a sua própria dependência de drogas, que teria sido provocada pelas cirurgias plásticas que Liberace o forçara a fazer.

Aliás, Liberace o convencera a fazer uma mudança em seu rosto, para que Scott pudesse ficar o mais assemelhado possível a ele, Liberace.

O processo terminou com um acordo. Liberace não tinha a menor coragem de sair do armário e seus assessores estavam sempre cuidando em colocar na mídia a imagem dele com um homem que estava em busca da mulher ideal.

Ao final, em tempos nos quais perdíamos Rock Hudson pra o vírus HIV, Liberace telefona para Scott a fim de saber se ele estava bem de saúde, rogando por uma visita, pois estava à beira da morte.

Scott (que não tinha o vírus HIV) o visita, amorosamente, e aceita seu pedido de perdão.

Ainda que a causa da morte tenha sido assinada por um médico como infarto, médicos de um departamento de saúde americano investigaram e rapidamente revelaram a verdade, que Liberace morrera por complicações causadas pelo vírus HIV.

Até ai uma história qualquer, interessante, mas mais ou menos banal e corriqueira na Hollywood daqueles (e de outros) tempos.

Acontece que a interpretação de Matt Damon como Scott Thorson e de Michael Douglas como Liberace são simplesmente E-X-T-R-A-O-R-D-I-N-Á-R-I-A-S e absolutamente impressionantes!

Vale o filme! Vale a direção de Steven Soderbergh! Mas a atuação de Matt Damon e, ainda muito mais, a de Michael Douglas valem uma vida!

O filme levou oito Emmys, das 15 indicações que teve, nas categorias voltadas a minisséries e filmes para a televisão: elenco, direção de arte, edição, hairstyling, mixagem de som, figurino, fotografia, maquiagem com prótese e maquiagem sem prótese.  

"Minha Vida Com Liberace" levou o Emmy de Melhor Filme para TV e Michael Douglas o de Melhor Ator de Minissérie e Filme.

Imagina na Copa! Digo, no Oscar...

O produtor cinematográfico que se arrependeu põe o dedo aqui, que já vai fechar!

domingo, 8 de setembro de 2013

TEUS OLHOS MEUS (2010)


ADVERTÊNCIA 1: O assunto é forte, não leia e não assista o filme se tiver a mente fechada para as questões da psique humana!

ADVERTÊNCIA 2: Eu vou contar a história do filme todo. Não leia se não quiser saber a história do filme!

Eu estou até agora de olhos estatelados diante do atrevimento do diretor Caio Sóh em fazer este filme.

Você começa o filme vendo um homem barbudo chorando, dirigindo um carro e chorando copiosamente. “Deve ter brigado com a namorada”, pensa. Mas ai você sente que o choro é muito copioso e deve ter morrido alguém... “Perdido tudo o que tinha?”

Sabe-se lá porque aquele homem chora tanto, mas fica, já no início do filme, a certeza de algo estranho, indefinível, que traz aquele choro à cena logo no início do filme.

Corta para uma cena onde dois homens assistem em Super Oito imagens do passado de um deles, Otávio, o homem que chora no começo, vivido pelo charmosíssimo Remo Rocha.

O outro homem é seu atual companheiro e as cenas são filmagens de um amor do passado de Otávio, Ligia

Cenas de juventude, românticas e um pouco atrevidas, os dois na praia, Ligia tirando a roupa e convidando Otávio a um banho de mar...

O companheiro de Otávio tem uma crise de ciúmes ao ver os olhos amorosos com que o ser amado olha para seu passado com Ligia.

Otávio se sente mal com a crise de ciúmes do outro, pede para que ele não estrague a história dos dois com ciúmes do passado; diz que primeiro ele teria que voltar a gostar de mulher, depois reencontrar Ligia para que o companheiro então pudesse pensar em começar a ter algum ciúme.

Brigam. É noite. Otávio sai para a praia, desopilar.

Corta para uma cena doméstica, onde um jovem - Gil chega em casa bêbado e é muito cobrado por um homem que parece ser seu pai, mas na verdade é o marido de sua tia (Roberto Bomtempo), uma vez que sua mãe morrera e ele fora criado por sua tia Leila (Paloma Duarte).

Típica cena de jovem incompreendido em conflito familiar, com discussões, e culpas, e álcool e baseado e um quarto todo maluco, pichado, e violão, e uma clarineta que Gil começa a tocar trancado no quarto em plena madrugada, a tia intervém, o jovem a ama e detesta mesmo é seu tio, mas sai com seu violão na madrugada, vai até a praia para compor e desopilar.

O fabuloso Emílio Dantas dá vida a Gil, o jovem que namora Carla, também barbudo, cabeludo, com grandes pensamentos existenciais, em confronto com sua própria história autodestrutiva de vida, sem nenhuma perspectiva de futuro que não seja a crise e a crise e a crise.

Num quiosque na praia, se encontram os dois, Gil e Otávio

Gil, sem grana, pedindo fiado para poder beber uma dose enquanto compõe, é visto por Otávio, que é pianista e produtor musical, e lhe oferece o quanto queira da garrafa de whisky com a qual estava abraçado.

Os dois bebem, falam da vida, da música, das dores da existência... 

Gil leva Otávio ao apartamento de uns amigos malucos, todos fazendo uma música de excelente qualidade, e bebem mais e se sentem leves e se sentem livres e de repente estão muito felizes.

Voltam para a praia, quase ao amanhecer, Otávio se recorda do filme com Ligia, que vira no início da noite, faz como ela, tira a roupa, convida Gil para um banho de mar e mergulha.

Gil, de calça jeans, tira a camiseta e mergulha também.

Voltam para a areia, dizem que estão felizes um na companhia do outro. Otávio admite que aquela foi uma noite incrível, onde se sentiu livre. Olham-se nos olhos e se reconhecem: “eu me vejo nos teus olhos”.

Os rostos se aproximam. Beijam-se.

Gil fica mexido. Enojado, foge após o beijo. Otávio lhe pede desculpas, diz que isso não era para ter acontecido.

Na sequencia, expulso de casa pelo tio opressor (que o considera um vagabundo porque quer ser músico), Gil acaba pedindo um tempo para sua namorada Carla, pois diz que alguma coisa aconteceu dentro dele que precisa digerir.

Sem ter para onde ir, Gil vai ao estúdio de Otávio, lhe pede ajuda com trabalho e avisa: “só que eu não quero esses papos de viado, não venha com esses papos pra cima de mim por que essa não é a minha praia!”.

Otávio rompera com seu companheiro, por que, o tendo visto com Gil na praia aquela noite, numa crise de ciúmes queimara o filme e todas as lembranças dele com Ligia.

Inicia-se um processo musical muito produtivo. Otávio reúne os amigos musicais de Gil, lhes grava um CD, começam a fazer show. Gil ajuda no estúdio, ganha algum dinheiro e, numa ocasião em que Otávio percebe que Gil está sem casa, o convida para ir dormir na casa dele aquela noite. No sofá.

Corta para os dois amanhecendo na cama de Otávio

Gil com suas elucubrações poéticas a respeito de quem fora e de quem agora passara a ser, ouve de Otávio que ele descobriu que nessa vida é bom se deixar estar no peito de alguém em quem se confia. “Não importa se é no peito de uma mulher, ou no de um homem, o que importa é encontrar o peito de alguém em quem se confie e onde se possa estar feliz.”

Os dois passam a se relacionar amorosamente; Gil vem para a casa de Otávio, recebe apoio constante para crescer como Homem, inicia a faculdade de Música, ganha um carro de presente do companheiro. Há, ali, muito carinho. Uma proteção muito paternal de Otávio sobre Gil e uma devoção quase filial de Gil para com Otávio. Tudo envolto pelo amor carnal, mas se misturando de forma quase etérea com os outros elementos que o amor pressupõe.

Tempos depois, o tio carrasco de Gil morre e o garoto, que amava muito a tia que o havia criado, decide que quer voltar à casa onde cresceu e apresentar à tia o seu companheiro.

A despeito da resistência de Otávio, os dois vão para um jantar na casa da tia Leila e, antes ainda do jantar, ela passa mal, vomita, sua pressão sobe, ela se tranca no banheiro e pede ao sobrinho que eles voltem outro dia.

Ambos saem, chateados. Gil entende que a tia talvez precise de um pouco mais de tempo para aceitar seu relacionamento com outro homem. Otávio se sente muito triste e incomodado e, noutro dia, vai sozinho à casa da Tia Leila conversar com ela.

Tia Leila o recebe, convida a se sentar e ouve as explicações de Otávio de que ele ama e quer o melhor para Gil.

A tia somente repete que aquele romance não é possível.

Otávio insiste, pergunta se é pelo fato de ele ser muito mais velho e a tia vai até o quarto, retornando com um porta-retratos com a foto da mãe de Gil, que morrera quando ela, Leila, tinha nove anos e Gil era apenas um menino.

Otávio fica surpreso ao saber que Gil era filho de Lígia.

Surpresa maior, entretanto, e grande desconforto, apesar de que você já tinha sacado isso, no transcorrer do filme, é saber que Gil era filho de Lígia com Otávio (que nunca soubera da gravidez).

E ai a gente volta pro começo, e vê aquele homem chorando muito.

E compreende os motivos.

O filme acaba assim.

Chamem o Freud, por favor, para explicar essa coisa do desejo e das coisas proibidas que estão intimamente ligadas ao desejo de cometê-las!

Roteiro impecável, atores incríveis, um diretor atrevido, linguagem poética e a simplicidade como fundo. Um super filme! Tem até Maria Gadú cantando. Eu recomendo aos fortes e aos bravos.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

FLORES RARAS (2012)

FLORES RARAS é sem dúvida um belo filme, mas muito previsível. No conjunto da obra o que se destaca mesmo é a atuação impecável de Glória Pires, uma puta atriz que se entrega às cenas de um modo espantoso e intenso, além de refletir perfeitamente a carioca liberada, rica e talentosa dos anos 60/70.

Lota, interpretada por Glorinha, ganha ares de intrepidamente amoral, Mas, oh, não, que pena, ela é um homem! Em tudo e por tudo um homem... Poderia ser uma mulher que ama outra mulher, mas, não, ver ali um homem para mim foi muito decepcionante e, até, eu diria mais, um fardo... Ela só se comporta como uma mulher ao final, mas ai já acaba o filme e Bruno Barreto fica me devendo alguma coisa que não sei bem dizer o que é.

Lilás, Bruninho Barreto, a única cena na qual efetivamente pude ver sua mão foi aquela do vidro, em que Bishop e Lota se amam pela primeira vez naquele magnífico cenário em Petrópolis e Lota está encostada naquele vidro como se estivesse no vácuo; no mais, sem grandes apontamentos para o  diretor.

O diretor de fotografia foi legal com a gente e muito generoso, mas são cenários que falariam ainda que fotografados por uma criança, sim, o Rio de Janeiro continua lindo e Petrópolis é algo assim indizível!

A trilha sonora foi bacaninha, também, com destaque pra Blue Velvet e Sábado em Copacabana.

Li por ai que Miranda Otto, atriz australiana que fez o papel de Bishop, teve “medo de expor demais a vida de alguém que era extremamente contida" e, de fato, dá pra sentir mesmo nela esse medo numa interpretação de alguém que não se joga, não se entrega a personagem, ainda que seja para viver alguém contida.

Tampouco conseguiu me convencer a força do relacionamento de Bishop com a poesia, aquilo que Barreto considera o foco do filme, uma vez que, na realidade, foi maior que seu relacionamento com Lota (a não ser pelo fato de ela ter deixado o Rio e voltado a ensinar poesia nos EUA, dedicando-se amorosamente a uma aluna...) e até mesmo com o studio no platô preparado pela arquiteta, do que com a própria poesia (até me espantei quando veio a notícia de que ela ganhou o Pulitzer, pois não a tinha visto, no filme, poeta!).

O filme está mais ou menos bem situado historicamente, com aquela presença poética de Carlos Lacerda e a gente consegue saber em que tempos a história está se passando.

Oscar de Melhor Atriz para Glória Pires (a americana Tracy Middendor, que interpretou Mary Morse, pode tranquilamente ficar com o de Melhor Coadjuvante). Talvez o filme receba uma indicação de Melhor Estrangeiro, por conta dessa atenção ao idioma inglês (que Glorinha pronuncia barbaramente!) e por se tratar de uma poeta americana comparada a Emily Dickinson (Dickinson, para mim a melhor entre as melhores!).

No mais, estou indo embora! Agora já podem me chamar de lagartixa, mas, por favor, esperem que eu tome uma certa distância para começar a atirar as pedrinhas.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

ALGUMAS HORAS DE PRIMAVERA (2012)

Se você ficou assombrado com AMOUR, do Haneke, imagino o que poderá pensar de Quelques Heures de Printemps do diretor Stéphane Brizé.

Ah, os franceses, meldewlsdelcielo, OS FRANCESES!!!!!

Eu estou até agora catatônica com a capacidade que os europeus têm em tratar de temas tão áridos de forma tão precisa e preciosa!

Algumas Horas de Primavera é simplesmente uma irretorquível obra prima que trata da relação entre mãe e filho, mas poderia ser qualquer outra relação visceral de profundos laços, a sensação é a mesma... Ou quase.

É a história do homem de 48 anos, Alain Evrard (interpretado por Vincent Lindon), que ao sair da prisão após 18 meses, volta a morar com a mãe, viúva, a Sra. Yvette Evrard, interpretada pela maravilhosa Hélène Vincent.

Alain era motorista de caminhão e acabara sendo preso por contrabandear objetos a mando de seu chefe. Mas, quando sai da prisão, encontra dificuldades em encontrar trabalho e, no retorno à casa materna, bem se vê que há uma clara dificuldade de relacionamento ali, entre mãe e filho.

Num compasso lento, denso e que, mesmo assim, nos deixa colados ao filme, vamos sendo informados, junto com Alain, que aquela senhora sistemática, rígida e até um tanto quanto antipática, que implica muito com o filho, está em fase quase terminal de um câncer no cérebro.

A despeito disso, a mãe leva sua vida cotidiana de forma impecável e tem imensa força.

O filho, por seu turno, vai mostrando todas as características de uma imaturidade afetivo-relacional, que se acentua em suas atitudes grosseiras para com a mãe e até nas atitudes que tem com uma mulher, que conhece e com quem protagoniza belas cenas amorosas no filme.

Ambos, mãe e filho, são duros e orgulhosos... Há muito amor ali, vê-se, mas, como é mesmo na vida real, nenhum dos dois dá braço a torcer e assim se passam os dias até que Alain se informa melhor sobre a gravidade da doença da mãe e descobre, numa gaveta, que ela adquiriu um plano em uma associação, que lhe assegurará um suicídio assistido e indolor, caso sinta necessidade.

É um programa realizado na Suíça, já que a legislação francesa não o permitiria.

Em meio as sutilezas das relações humanas, vão se desenrolando ações que nos tocam profundamente o coração e alma sem que se utilizem de artifícios musicais emotivos; é quase como em Haneke: sem música. E digo quase porque, ao final, entra uma música, mas entra, assim, depois que já estamos completamente arrebatados pela ação, e entra a nos dizer que apesar de tudo a vida segue.

O filme todo é impecável, mas duas cenas, especialmente me marcaram para sempre de forma indelével:

A primeira é a que retrata a eutanásia da mãe no programa suíço, na companhia do filho, em um momento que se abre para questões tantas, mas marca mesmo pela declaração de amor de ambos, um ao outro, naquele momento final...

A outra é a cena final mesma, a última cena do filme, depois que já começou a tocar aquela música que nos informa que a vida segue. Só vendo, para entender... Só estando dentro do filme para sentir a grandeza desta cena final, tão simples e ao mesmo tempo tão avassaladora! É nessa hora que a angústia, a agonia e a raiva sentidas durante o decorrer do filme saem do seu peito e dão lugar a um sorriso e a um sentimento de que a vida é risivelmente simples.

Aliás, a expressão e os traços faciais e corporais emprestados a Alain pelo ator Vincent Lindon e a fragilidade determinadamente forte da mãe Yvette Evrard, presentes na belíssima interpretação de Hélène Vincent são parte ativa da beleza e sensibilidade deste filme.

Filme, não: obra prima que eu recomendo ajoelhada com as mãos postas em prece e a alma transfigurada louvando a capacidade dos franceses em construírem algo tão belo! Ah, os franceses...

AMOR PLENO (2012)

Você começa a assistir este filme e, já, no início, descobre que não é um filme e sim um poema visual com essência de amor. Já, no início, descobre que a linguagem é a mesma utilizada por Terrence Malick em “A Árvore da Vida” e, portanto, não pode ser assistido com expectativa de enredo, ou de começo, meio e fim.

Porém, se você se conectar com o poema, terá visto algo belo, inusitado e que diz com os relacionamentos amorosos e seus estágios, esses sim, todos com começo, meio e fim...

Começos encantadores, meios turbulentos e fins que dão origem a outros começos e recomeços e novos encantos e entardeceres luminosos em direção ao outro e ao âmago de si mesmo.

Para isso, Malick movimenta o corpo humano de forma tão real e em meio a fotografias vibrantes e também em movimento, que, se você se entregar, fará parte do filme com toda a poesia de sua vida concentrada no amor.

É um filme vermelho. É um filme do Amor. É mesmo pleno!


quinta-feira, 30 de maio de 2013

CASAMENTO SILENCIOSO (NUNTA MUTA -2008)

“Aconteceu na Romênia, em 1953” – é o crédito que sobe ao final desta coprodução entre Romênia, França e Luxemburgo com direção do romeno Horatiu Malaele.

Com um time dramático tragicômico e burlesco, o filme se inicia nos dias atuais, com uma equipe de filmagem que se diz buscadora de histórias paranormais, chegando ao pátio do que já foi uma fábrica na Romênia e nos informando, jocosamente, que antes ali fora “uma vila que os comunistas destruíram para levantar uma fábrica que agora está sendo destruída para construir uma vila para ricos”.

Remetidos para o passado, somos conduzidos a uma história, que nos é mostrada de forma deliciosa, sobre os personagens daquela vila romena, com suas tradições e peculiaridades, que está sujeita às barbáries russas.

Um casamento será celebrado, tudo está farta e festivamente preparado, a alegria toma conta de todos os convidados, muita música, comida e bebida, mas soldados russos chegam e avisam que Stalin está morto e nenhuma comemoração poderá ser realizada sob pena de ser tratada como alta traição.

Criativamente, após a saída dos soldados russos, decide-se realizar a festa em silêncio e o que se passa a partir daí é sensacional. Algo que nos remete à comédia italiana, ainda que seja uma “festa de polacos”. Denunciando, em meio ao cômico, a tragédia dos regimes ditatoriais.

A vida, a alegria e a desobediência civil são elementos constantes na história, como a nos dar a trilha do que pode nos salvar do autoritarismo.

Filme delicioso, poético, teatral, inteligente, diferente. Eu recomendo!


domingo, 12 de maio de 2013

JOSÉ & PILAR (2010)


"Um dia escrevi que tudo é autobiografia; que a vida de cada um de nós, estamos contando enquanto fazemos e dizemos; nos gestos, na maneira como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Queria eu dizer, então, que vivendo rodeado de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água, desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla". - José Saramago

Em Azinhaga, Portugal, eternizou-se o encontro amoroso etre duas esquinas que se cruzam, cujas ruas se chamam José Saramago e Pilar Del Río.

Difícil dizer qual dos dois é mais lindo, José Saramago ou sua companheira e fiel escudeira, a jornalista espanhola Pilar Del Río.

Saramago nasceu em Azinhaga, de uma humilde família portuguesa, e somente se tornou escritor após os 60 anos de idade. Tinha 27 anos a mais que o amor de sua vida, Pilar, com quem conviveu por mais de 20 anos.

Por conta de ter ido morar na Espanha após ter recebido Nobel de Literatura, em 1998, Portugal manteve com ele uma relação de indiferença, e até hostil, por muitos anos, o que, felizmente, foi revertido ainda antes da morte de Saramago.

Miguel Gonçalves Mendes dirige o filme a partir da coleta de 240 horas de material sobre o cotidiano de José e Pilar que, portanto, são os próprios atores de seus personagens reais.

O filme se desenvolve em torno da criação e lançamento do livro "A Viagem do Elefante", de Saramago.

Os quatro anos de filmagens resultaram em um filme inicial com seis horas de duração, das quais Saramago pode assistir a uma versão com três horas, antes de morrer.

A edição do filme durou mais de um ano e meio.

Para convencer o casal a filmar, o diretor Miguel Gonçalves Mendes levou seis meses.

O resultado é um filme surpreendente onde somos levados ao dinâmico e cultural universo de Saramago e Pilar, nos deparando com um relacionamento belíssimo de dois seres que fazem jus ao adjetivo "humanos".

Saramago, o carismático comunista ateu que quando o vestiam com roupa de marca, pedia que arrancassem com a tesoura a etiqueta da Armani, nos presenteia com passagens belíssimas de sua vida, já perto dos 84 anos de idade, sempre ativa e produtiva.

Destaque para suas declarações sobre religião, após a leitura de um trecho de seu livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde Jesus clama, sobre seu pai "Homens, perdoai-lhe, por que ele não sabe o que faz":

 É uma aldrabice, pá, uma aldrabice completa... Eu fui uma ou duas vezes à missa, quando tinha 6 anos, mas eu não... Enfim, aquilo não me convenceu nada, pá. E fui eu quem disse a minha mãe: 'não, eu não vou a isso...' E não fui... E Nunca mais... E não tive nenhuma crise religiosa, e não tenho medo da morte, não tenho medo inferno, não tenho medo, digamos, do castigo eterno pelos pecados... Que pecados? Pecados? O que é isso, o pecado, pá? Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo! E foi o que a igreja fez, e já não faz tanto, porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham, é mais uma farsa, mais uma farsa trágica... Deus... Onde está? Antigamente, dizia-se: 'está no céu'. Mas, o céu não existe! Não há céu! Não há céu! O que é isso, pá, céu? Há o espaço. Há 13 mil milhões de anos-luz. Imagina, pá...
Os limites do universo se encontram há 13 mil e 700 milhões de anos-luz... Anos-luz! Onde está deus? Quem quiser crer, creia e acabou-se! Eu digo em alto e bom som, que não, enfim, para mim, não. E repara que com 83 anos já seria uma boa altura para começar a pensar no futuro, quer dizer, uma pessoa, durante a vida, pode fazer umas quantas tonteiras, dizer umas quantas barbaridades a respeito do senhor deus, mas quando chega aos 83 tem de, deveria começara a ter um bocadinho de cuidado com o que diz. Mas isso não muda nada a realidade. A realidade continua a ser igual à de sempre: nascer, viver e morrer, e acabou. Mais nada. Que isso não aconteça. Espero morrer lúcido e de olhos abertos. Pelo menos gostaria, que fosse assim.


A força e o caráter de Pilar, se refletem bem no trecho do filme em que ela declara:


A mim o que me parece é que a razão tem que prevalecer sobre a vontade. Isso parece o que há de mais frio e o que há de mais forte que se pode dizer, mas creio que somos racionais, e temos a obrigação de ser racionais e de não nos deixar levar, jamais, pelo instinto. Ou seja, recuso-me, recuso-me a chorar e a ficar insatisfeita e deprimida. “Ah, mas é que a depressão existe...” Sim, pois sim, mas tomamos uns comprimidos e vamos trabalhar, ponto! Sou a favor dos fármacos. Ouve, uma vida inteira sofrendo com dores quando há a Medicina, que nos ajuda, e vêm agora uns quantos gurus dizer: “Não... É que fazem mal!” Não, o que faz mal é passar mal! É preciso desdramatizar! Sobretudo nós, os privilegiados... Eu não posso estar e não posso me dar ao luxo de estar desesperada, nem sem esperança, nem triste, porque tenho tudo, e mais, tenho, inclusive, a força para combater, o que é o maior privilégio!


Pilar, que era uma grande feminista e libertária, quando assumiu a presidência da Fundação Saramago, respondeu a um jornalista português, que a entrevistava iniciando por perguntar como era ser presidente de uma fundação: “Presidenta! Faço questão que comeces a entrevista dizendo que só os néscios me chamam presidente. A palavra não existia porque não existia a função. Existe a função, existe a palavra que denomina a função. Sou presidenta e quem me chamar de presidente é néscio!”

Ao ser perguntada por uma amiga porque seu feminismo era tão radical, Pilar não titubeia: “Meu feminismo é extremamente radical, porque tenho que compensar a falta de feminismo que têm algumas.

O filme traz, ainda, a emoção de Saramago ao assistir o filme do Fernando Meirelles sobre sua obra “Ensaio sobre a cegueira” e as declarações de amor que fez publicamente à companheira, quando esteve no Brasil para o lançamento de seu livro “A Viagem do Elefante”: “Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, teria morrido muito mais velho do que eu sou.











sábado, 11 de maio de 2013

DENTRO DA CASA (2012)

Um filme genial sobre Germain, um entendiado professor de francês, frustrado como escritor e muito crítico em em relação à péssima qualidade literária de seus alunos,  que acaba encontrando entre eles, Claude, um jovem cujo estilo literário lhe chama a atenção.

Tudo começa com a leitura de uma redação, escrita por Claude, cujo tema dado pelo Germain era algo como "meu final de semana". Dentre tantas redações medíocres que Germain, corrigindo os trabalhos em casa, lê para sua esposa,  Jeanne, dona de uma decadente galeria de arte, a de Claude lhes surpreende, pela qualidade do estilo e uma peculiaridade.

É que Claude descreve o modo como sempre quis entrar na casa de seu colega de uma forma voyeur que desperta no professor o interesse incontrolável de devorar novos capítulos daquela observação, muito provavelmente porque vê, no aluno, a capacidade de criação literária que nunca encontrou em si.

O que se vê a partir daí é uma trama simplesmente genial, onde a história vai se construindo a partir de cada ida de Claude à casa de seu colega; cada redação trazida pelo aluno para o professor, que passa a orientá-lo obsessivamente, tem, ao final a palavra "(continua...)".

E assim vão se revelando os desejos do adolescente dentro da casa do amigo, os defeitos da família do amigo, tudo de dentro da casa, literatura que acaba mexendo com a estrutura estagnada que há tempos reinava, também, dentro da casa do Professor Germain.

A direção é de François Ozon, que também é responsável pelo roteiro, uma adaptação da peça teatral “O Menino da Última Fila” de Juan Mayorga. François Ozon cria diálogos incríveis e tem o poder de nos deixar absortos, presos ao filme, até que suba o último crédito depois do final, todos exercitando de forma criativa nosso voyeurismo, Claude, Germain e, sobretudo, nós, que a tudo assistimos confortavelmente.

domingo, 31 de março de 2013

BENNY’S VIDEO (1992)


Um dos primeiros filmes de Michael Haneke, que já trilhava firme seu estilo hiper-realista, Benny’s Video é uma crítica crua e violenta à sociedade do espetáculo, particularmente no que diz com deslumbramento midiático, em tempos onde cada um carrega em si a possibilidade da produção audiovisual, que aprisiona e hipnotiza, mantendo-nos à margem de nós mesmos, como meros espectadores de nossas próprias vidas e completamente despidos da condição de sujeitos.

Benny é um adolescente nórdico, pertencente a uma família aristocrática que cultiva o hobby das imagens. Passa a maior parte do tempo confinado em seu quarto, que é uma bem equipada ilha de edição das imagens que costuma captar, assim como seus pais.


O jovem é aficionado por um vídeo que fez, de um enorme porco sendo morto com uma pistola de ar comprimido. Cena brutal e violenta que vê e revê incessantemente, até passa-la para uma garota que leva para seu quarto numa ocasião em que seus pais saem em viagem.


Após verem o vídeo caseiro do porco, feito na propriedade da família de Benny, o garoto tira de uma gaveta a arma que matou o porco e provoca a garota a comprimi-la contra si.


Num jogo adolescente onde ele a chama de covarde por não ter tal “coragem”, Benny acaba disparando a arma no corpo da jovem, que o desafiara questionando porque ele não o fazia, também o chamando de covarde.


Todas as câmeras de Benny estavam a postos para captar tão bizarro espetáculo e a mocinha agoniza como um porco até sucumbir aos disparos do garoto.


O que se esparrama aos nossos olhos e mentes a partir dai, é uma trama brutal na qual o próprio filho providencia a exibição do vídeo da morte da garota aos pais, causando reações de deslumbramento e medo que vão desde a racionalização sobre se devem ou não entregar o filho à polícia, até a decisão de protegê-lo, protegendo-se a si mesmos, como pais que poderiam ser acusados de negligentes na condução dos fatos ligados ao filho.


A família tem um esqueleto guardado no armário, e enquanto avalia o que fazer com ele, discute a decisão de levar os pertences da defunta para queimá-los na fazenda e esquartejar o seu corpo em pequenas partes que possam sumir “desde que não entupam o encanamento”, ao mesmo tempo em que o filho é levado para uma viagem com a mãe, em visita a região do Oriente Médio.


No retorno, vê-se que os membros da família não sofreram alterações emocionais significativas, a despeito do bizarro episódio. O pai tenta conversar com Benny tranquilizando-o ao argumento de que tudo está sob controle e consegue até pronunciar um tímido “eu te amo”, que se perde na ausência de reação do filho.


É como se todos tivessem apenas saído juntos de uma sala de cinema, ou algo assim.


Ao final, Benny triunfalmente leva à polícia sua obra prima: o vídeo editado onde os pais falam de um corpo a ser picotado e de pertences de uma jovem morta a serem queimados. O delegado lhe faz algumas perguntas e o jovem lhe questiona: “posso ir agora?”.


Pais e filhos se encontram na porta da delegacia, quando aqueles são chamados e este foi liberado por ter trazido imagens que os comprometiam.


Todos seres apáticos, resignados... Resta a nós, espectadores, a imagem e o seu incômodo.


Viva Haneke, o visionário Haneke, que já em 1992 nos chamou a pensar sobre isso. Pensemos!




IO E TE (2012)


Que grata surpresa ver um filme de Bernardo Bertolucci dez anos depois de seu último “Os Sonhadores”, belíssimo, que retratou Maio de 68!

Não me surpreendi com a temática: a adolescência. Os Sonhadores já tratou de anseios juvenis. Mas, aqui, em Io e Te, o genial Bertolucci cria todo um cenário apto a expressar anseios muito mais existenciais do que políticos.

Adaptação do romance de Niccolò Ammaniti, Io e Te tem como protagonista o jovem de 14 anos, Lorenzo, vivido pelo sensacional Jacopo Olmo Antinori.

Com seu rosto repleto de cravos e espinhas, seus despenteados e rebeldes cabelos encaracolados e uma expressão que mescla perfeitamente a inocência e um vago desejo de perdê-la, Lorenzo se nega a sair de seu narcisismo em estado puro e, eu diria, até, de seu autismo cultivado com devoção.

No começo do filme você estranha, mas até simpatiza com aquela figura esdrúxula, que desafia seu analista, criva o cara do pet shop de perguntas e tem diálogos edipianos com sua mãe. Mas quando ele sai de casa pronto para participar de um acampamento de esqui com a escola, todo equipado, e se tranca no porão da sua casa para passar uma semana com um estoque de coca-cola, algumas guloseimas e um formigueiro de vidro, você se pergunta “o que, diabos, esse mala sem alça vai aprontar enquanto deixa sua mãe pensando que ele está viajando com a escola?”.

Lorenzo se abriga da possibilidade de socialização, quer preservar sua inocência e se preservar da transição para a vida adulta. Quer manter intactas suas curiosidades infantis estando só, mas ao abrigo materno, pois ainda que não lhe saibam no porão, ele sabe que logo acima dele repousam seus pais.

Porém, como ninguém pode se abrigar da vida, sua meia irmã, Olivia, expulsa de casa pela mãe de Lorenzo, em quem (mais tarde se descobre) no passado atirara uma pedra quase a matando, aparece no porão para retirar dali sua caixa de pertences.

Jovem, ainda que mais velha que Lorenzo, a bela Olivia (Tea Falco), acaba abrigando-se com Lorenzo no porão, a quem se impõe por estar em forte crise de abstinência de heroína e não ter para onde ir. Traz, para “a caverna” a notícia de que existe um mundo real que não se compõe apenas pelas projeções oníricas aonde se abriga seu irmão.

Olivia é o arauto da passagem. E, em meio a uma cenografia bertolucciana, nós somos transportados também; primeiro a um intrépido momento de nossas vidas (e/ou das vidas de nossos filhos), onde relembramos com ternura nossa poderosa adolescência. Depois, à necessidade poética de que a vida seja real.

Lorenzo nos conduz ao passado. Olívia nos toma pela mão e ordena que cresçamos. Ambos nos embalam, realidade e ternura; fantasia e sonhos possíveis; a crueza objetiva da vida numa demonstração de que é preciso seguir caminhando para fora de nossas cavernas e porões, onde ficarão para sempre guardadas nossas melhores lembranças. Seguir caminhando em direção ao que se é, respirar-se, renovar-se.

Grazie, Bertolucci!